Sunday, September 02, 2007

O ECLIPSE


O eclipse não é uma lição de ontologia, e muito menos de psicologia sobre as relações amorosas, mas de física; corpos em deambulação, interação, intersecção descrevem um espaço abstrato, a partir do qual Antonioni erige formas em contraposição à luz. De um fio de argumento, o filme encaminha-se para um progressivo buraco negro, sob a égide do qual as formas dos personagens e seus dramas ( fragmentos de dramas, fiapos de expressão) vão cedendo lugar a uma espécie de ontologia ( agora sim) selvagem, bruta. A Antonioni não interessa mais o plano das árvores fixados pelo olhar de uma insone Vitti, mas o olho desgarrado de um corpo que, simplesmente, vê. Uma espécie de genealogia da percepção bruta, da percepção como anterior ao humano, à sua incrustação numa subjetividade, percorre o filme como a sua metafísica secreta. Suas arestas, sua limpidez, seu ritmo hierático, o sufocante espaço dado aos objetos nos planos ( mais do que em qualquer outro filme dele, talvez Blow-up) lançam-nos em uma nova experiência do devir: não um devir humano, uma temporalidade corriqueira, afetiva, emaranhada na trama dos afetos. É a constatação de que o cinema de Antonioni, a partir sobretudo de O eclipse ( que tem em Blow-up a correlação imediata deste processo) se afirma, cada vez mais, como uma espécie de investigação sobre o que Merleau-Ponty chamaria de ontologia selvagem, sobre as origens da percepção, a visão do ver, o perceber do percebido. Isso numa diapasão ascética, numa austeridade minimalista, num compasso inóspito.